Como a Digestão Funciona: Músculo Liso, Sistema Nervoso, Neurotransmissores e Hormônios

Tópicos do Artigo:

  1. Introdução
  2. Músculo Liso Gastrointestinal
    • Potencial de Ação do Músculo Liso
  3. Mecanismos Neurais da Função Digestiva
    • Neurotransmissores Secretados por Neurônios Entéricos
  4. Controle Hormonal do Trato Digestivo
    • Gastrina
    • Colecistoquinina (CKK)
    • Secretina
    • Peptídeo Insulinotrópico Dependente de Glicose (GIP)
    • Motilina

Introdução

O sistema digestivo assegura um fornecimento contínuo de água, eletrólitos, vitaminas e nutrientes essenciais ao organismo através de um processo complexo e perfeitamente coordenado. Esse mecanismo envolve o movimento dos alimentos ao longo do trato digestivo, a secreção de enzimas e sucos digestivos para decompor os alimentos em partículas assimiláveis, e a posterior absorção de água, minerais, vitaminas e nutrientes processados. Paralelamente, uma intensa rede vascular nos órgãos digestivos transporta essas substâncias absorvidas para a circulação sistêmica, enquanto sistemas locais, nervosos e hormonais regulam com precisão todas essas funções de forma integrada.  

Anatomicamente, a parede intestinal apresenta uma estrutura multicamadas que segue um padrão específico da superfície externa para a interna. A camada mais externa, a serosa, atua como revestimento protetor, seguida por uma camada de músculo liso com fibras orientadas longitudinalmente e outra com fibras dispostas circularmente. Mais internamente encontra-se a submucosa, uma camada de tecido conjuntivo rico em vasos sanguíneos, e finalmente a mucosa, que entra em contato direto com o conteúdo alimentar. Incorporada a essa arquitetura básica, observa-se ainda uma camada adicional de fibras musculares lisas dispersas na região mais profunda da mucosa, conhecida como camada muscular da mucosa. São essas diversas camadas de músculo liso que, trabalhando em perfeita sincronia, possibilitam todas as funções motoras essenciais do intestino, desde os movimentos peristálticos até a mistura eficiente do quimo durante o processo digestivo.

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Músculo Liso Gastrointestinal

As células musculares lisas dentro de cada feixe estão interligadas eletricamente através de numerosas junções comunicantes (gap junctions), que funcionam como canais altamente permeáveis para a passagem de íons entre as células adjacentes. Essa conexão íntima permite que os impulsos elétricos responsáveis pelo disparo das contrações musculares se propaguem facilmente de uma fibra para outra dentro do mesmo feixe, com uma transmissão significativamente mais rápida no sentido longitudinal do que na direção transversal.

Os diversos feixes de fibras musculares lisas são parcialmente isolados entre si por camadas de tecido conjuntivo frouxo, porém mantêm múltiplas interconexões através de pontos de fusão entre os feixes. Essa organização peculiar faz com que cada camada muscular atue como um verdadeiro sincício funcional – uma rede tridimensional integrada de feixes musculares interconectados. Nesse arranjo, qualquer potencial de ação gerado em determinado ponto da musculatura tende a se propagar de forma radial em todas as direções através da rede muscular. O alcance dessa propagação depende diretamente do grau de excitabilidade do tecido muscular no momento: em algumas situações, o impulso pode se extinguir após percorrer poucos milímetros, enquanto em outras condições pode se espalhar por vários centímetros ou mesmo atravessar extensas porções do trato digestivo, tanto no sentido longitudinal quanto transversal.

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Potencial de Ação do Músculo Liso

O tecido muscular liso que reveste o sistema digestivo apresenta uma característica atividade elétrica espontânea, com oscilações quase constantes no potencial de membrana de suas células. Essas variações elétricas se manifestam principalmente através de dois padrões distintos: flutuações rítmicas de baixa amplitude (ondas lentas) e descargas elétricas rápidas (potenciais de ação ou espículas). Além disso, o potencial de repouso basal dessas fibras musculares não é fixo, podendo sofrer modulações significativas que influenciam diretamente na regulação dos movimentos peristálticos e outras funções motoras do aparelho digestivo.  

Essa propriedade única permite que o músculo liso gastrointestinal ajuste sua contratilidade de acordo com as necessidades fisiológicas, respondendo tanto a estímulos locais quanto a sinais neuroendócrinos. As variações no potencial de membrana atuam como um mecanismo regulador fino, determinando a intensidade e a frequência da atividade contrátil em diferentes segmentos do trato digestivo.

Mecanismos Neurais da Função Digestiva

O sistema digestivo conta com uma complexa rede neural intrínseca, conhecida como sistema nervoso entérico, que se estende de forma independente ao longo de toda a parede intestinal, desde a porção esofágica até a região anal. Esse sofisticado aparato neuronal abriga uma impressionante quantidade de células nervosas – ultrapassando a marca de 100 milhões de neurônios, superando inclusive o total presente na medula espinhal.

Essa rede neural especializada apresenta dois principais aglomerados de neurônios interconectados: o plexo mioentérico (ou de Auerbach), localizado entre as camadas musculares longitudinal e circular da parede intestinal, e o plexo submucoso (ou de Meissner), situado na camada submucosa. Além dessas estruturas, o sistema conta com uma extensa rede de receptores sensoriais distribuídos tanto no epitélio digestivo quanto nas camadas mais profundas da parede intestinal.

Estas terminações nervosas sensoriais estabelecem conexões bidirecionais não apenas com os plexos entéricos, mas também com estruturas neurais externas, incluindo os gânglios simpáticos pré-vertebrais, a medula espinhal e, através do nervo vago, com o tronco cerebral. Essa intrincada rede de comunicação permite tanto a execução de reflexos locais, confinados à parede intestinal, quanto a ativação de respostas reflexas mais amplas, mediadas pelo sistema nervoso central ou pelos gânglios autonômicos, garantindo assim uma fina regulação das atividades digestivas.

Neurotransmissores Secretados por Neurônios Entéricos

Estudos científicos revelaram a existência de mais de 25 possíveis neurotransmissores secretados pelas terminações nervosas dos neurônios entéricos. Entre esses mensageiros químicos destacam-se compostos como a acetilcolina, noradrenalina, ATP (trifosfato de adenosina), serotonina, dopamina, colecistoquinina, substância P, VIP (peptídeo vasoativo intestinal), somatostatina, encefalinas (leu e met), bombesina, neuropeptídeo Y e óxido nítrico, entre outros. Embora o papel fisiológico preciso de muitos desses mediadores ainda não esteja completamente elucidado – o que limita uma análise mais aprofundada no presente contexto – algumas de suas propriedades funcionais já foram caracterizadas.  

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Controle Hormonal do Trato Digestivo

Os hormônios digestivos são secretados diretamente na corrente sanguínea portal, atuando sobre órgãos-alvo que possuem receptores especializados para essas moléculas. Sua ação característica mantém-se inalterada mesmo após a interrupção completa das vias neurais entre o local de produção hormonal e os tecidos onde exercem seus efeitos, demonstrando sua natureza essencialmente endócrina e independente da regulação nervosa.  

Gastrina

A gastrina é liberada pelas células G presentes no antro gástrico como resposta a diversos estímulos desencadeados pela ingestão alimentar. Esses estímulos incluem a expansão mecânica da parede estomacal, a presença de derivados proteicos no lúmen gástrico e a ação do peptídeo liberador de gastrina, substância liberada pelas fibras nervosas da mucosa quando ocorre ativação do sistema parassimpático via nervo vago. Entre suas principais funções destacam-se a capacidade de estimular intensamente a produção de ácido clorídrico pelas células parietais do estômago e promover o desenvolvimento e renovação do epitélio gástrico, atuando como importante fator trófico para a mucosa digestiva. Essa ação é mediada por receptores específicos presentes nas células-alvo, que desencadeiam cascatas de sinalização intracelular responsáveis pelos efeitos fisiológicos observados. A gastrina mantém sua atividade mesmo na ausência de conexões nervosas intactas entre seu local de produção e as áreas de ação, caracterizando-se como um verdadeiro hormônio gastrointestinal com efeitos sistêmicos.

Colecistoquinina (CKK)

A colecistoquinina (CCK) é produzida pelas células I presentes no revestimento interno do duodeno e jejuno, sendo sua liberação estimulada principalmente pela presença de gorduras digeridas, como ácidos graxos e monoglicerídeos, no conteúdo intestinal. Esse importante hormônio desencadeia potentes contrações na vesícula biliar, promovendo a liberação de bile no intestino delgado, onde atua essencialmente na quebra e emulsificação de lipídios, facilitando sua posterior digestão e absorção. Paralelamente, a CCK exerce um efeito moderador sobre a atividade gástrica, reduzindo os movimentos do estômago. Esse duplo mecanismo permite, simultaneamente, a liberação de bile para processar as gorduras enquanto retarda o esvaziamento gástrico, garantindo tempo suficiente para a adequada digestão dos lipídios no trato digestivo superior. Além dessas funções digestivas, a CCK atua como sinalizador de saciedade, ativando terminações nervosas sensoriais no duodeno que enviam informações através do nervo vago para os centros cerebrais reguladores do apetite, inibindo assim a ingestão excessiva de alimentos durante as refeições.

Secretina

A secretina, reconhecida como o primeiro hormônio digestivo identificado pela ciência, é produzida pelas células S localizadas no revestimento duodenal. Sua liberação ocorre principalmente quando o quimo ácido proveniente do estômago atinge o duodeno através do esfíncter pilórico. Esse hormônio exerce uma influência discreta sobre os movimentos do tubo digestivo, enquanto desempenha um papel crucial no estímulo à produção pancreática de solução alcalina rica em bicarbonato. Esse mecanismo de neutralização ácida é fundamental para criar o ambiente adequado no intestino delgado, permitindo o funcionamento ideal das enzimas digestivas e protegendo a mucosa intestinal da acidez excessiva. A ação da secretina representa um perfeito exemplo de regulação neuroendócrina no sistema digestivo, onde a chegada do conteúdo estomacal ácido desencadeia respostas compensatórias que mantêm o equilíbrio fisiológico necessário para a digestão eficiente dos alimentos.

Peptídeo Insulinotrópico Dependente de Glicose (GIP)

O GIP (peptídeo insulinotrópico dependente de glicose), conhecido igualmente como peptídeo inibidor gástrico, é produzido pelas células da mucosa na porção proximal do intestino delgado. Sua liberação é estimulada principalmente pela presença de lipídios e proteínas parcialmente digeridas, embora os carboidratos também possam desencadear sua secreção em menor intensidade. Esse hormônio exerce uma ação reguladora sobre a atividade gástrica, reduzindo moderadamente os movimentos do estômago e consequentemente retardando a passagem do conteúdo alimentar para o duodeno – um mecanismo particularmente útil quando o intestino já se encontra ocupado processando nutrientes. Curiosamente, mesmo em concentrações plasmáticas inferiores às necessárias para afetar a motilidade gástrica, o GIP demonstra uma capacidade significativa de estimular as células beta pancreáticas, promovendo a liberação de insulina na corrente sanguínea. Essa dupla função hormonal posiciona o GIP como um importante mediador na interface entre os processos digestivos e metabólicos, atuando tanto na regulação do trânsito gastrointestinal quanto no controle dos níveis glicêmicos.

Motilina

A motilina é produzida pelas células do estômago e duodeno proximal durante períodos de jejum, atuando principalmente como estimulante da atividade motora do trato digestivo. Esse hormônio é liberado de forma rítmica, desencadeando padrões específicos de contração conhecidos como complexos mioelétricos interdigestivos, que percorrem o estômago e intestino delgado em intervalos aproximados de 90 minutos em indivíduos em estado de jejum. Sua secreção é suprimida após a ingestão alimentar, embora os mecanismos exatos dessa inibição ainda não estejam completamente elucidados pela ciência. Esses ciclos naturais de atividade motora desempenham um papel importante na limpeza do trato gastrointestinal entre as refeições, preparando-o para o próximo ciclo digestivo.

Referências Bibliográficas

  1. HALL, J. E.; HALL, M. E. Guyton and Hall Textbook of Medical Physiology. 13. ed. [S. l.]: Elsevier, 2016.
  2. LOS. Conozcamos nuestro cuerpo: Los intestinos. Disponível em: https://zonahospitalaria.com/conozcamos-nuestro-cuerpo-los-intestinos/. Acesso em: 2 abr. 2025.
  3. DEPERU.COM. Anatomía de la ilustración del tejido muscular liso 2025. Disponível em: https://www.deperu.com/imagenes/203579562-anatomia-de-la-ilustracion-del-tejido-muscular-liso.html. Acesso em: 2 abr. 2025.
  4. SEIFFERT, M. Intestino, o nosso segundo cérebro. Amo estar bem. Disponível em: https://amoestarbem.com.br/intestino-o-nosso-segundo-cerebro/. Acesso em: 2 abr. 2025.

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